Crônica do amor desperdiçado

Tenho insistido, nos meus artigos, que se faz no Espírito Santo literatura da mais alta qualidade. Volto sempre ao mesmo argumento, porque sinto, entre nossos formadores de opinião, certo afastamento da produção literária capixaba. Creio mesmo que tal fato ocorra pelo distanciamento dessas pessoas da linguagem artística literária como um todo, e não apenas da que se produz em nosso estado. Seguramente, leem pouco os grandes autores nacionais e internacionais, sejam romancistas, poetas ou cronistas. É um distanciamento amplo, produto de uma visão muito técnica da vida, que acaba por acarretar certo desconhecimento dos valores culturais e humanistas mais abrangentes. 

Some-se a isso o preconceito com aquilo que é produzido em nosso estado, que vai de  uma camisa a um romance, de um filme a uma peça de teatro. Fomos socializados com baixíssimo sentido de pertencimento a esta nossa terra, com um capixabismo ainda fraco e tardio. Assim, por uma série de razões, os ficcionistas locais atingem um público muito menor do que merecem. Temos autores de porte nacional pouco lidos, como Renato Pacheco, Luiz Guilherme Santos Neves, Reinaldo Santos Neves, Getúlio Neves, Adilson Vilaça, Francisco Aurélio Ribeiro e Rubem Braga, para ficar apenas nos autores sobre os quais tenho escrito mais recentemente. De fato, há dezenas de outras e outros tão importantes quanto estes.

Fiz essa pequena introdução para chegar ao meu tema de hoje: o livro Crônica do Amor Desperdiçado, de Pedro J. Nunes – escrito assim mesmo, com esse “J.” que deve ser de José, mas ele gosta de usar somente o jota; então, nem José e nem sem jota – coisas do Pedro. É um texto não muito longo que descreve um amor complicado, desperdiçado, como ele deixa claro no título. Além de desperdiçado é um amor interessado, interesseiro e manipulado até o limite da quase exaustão. Ele conduz o leitor maravilhosamente por esse labirinto apaixonado, desde o dia em que o narrador conhece o objeto de sua paixão até o desfecho, desde a tensão amorosa máxima até o desperdício de tanto sentimento. 

O título me fez lembrar um pequeno e extraordinário trabalho de Reinaldo Santos Neves, Muito Soneto Para Nada, que também trata de uma paixão, digamos, desperdiçada e descrita por outro grande autor capixaba. Aliás, alguns outros elementos me levam a crer que Reinaldo tenha sido uma referência muito presente neste texto de Pedro J. Nunes.

Para começar, como muitos personagens centrais em toda a obra de Reinaldo, o narrador de Crônica do Amor Desperdiçado é professor da Universidade Federal do Espírito Santo, no curso de Letras, ou seja, um intelectual ligado ao mundo da literatura. É esse lugar que lhe permite teorizar sobre autores de uma forma geral, dando ao texto elegância e profundidade, além de ambientar muitas ações no Campus da Ufes, como Reinaldo. Há mesmo um anexo sobre os amores de Dostoiévski, no fim do livro, que dialoga magistralmente com a história.

Li um comentário sobre o livro do qual estou tratando feito por outro craque, Francisco Aurélio Ribeiro, o qual, embora feito em grupo de amigos da literatura, tomo a liberdade de transcrever: “Li o livro do Pedro, obra cheia de intertextos e de metalinguagem. Uma delícia para os amantes da literatura e uma aula de como escrever um romance”. Cito porque concordo com Francisco Aurélio e julgo que ele tem mais autoridade do que eu para fazer um elogio dessa ordem. 

Pedro faz claramente, como já citado, homenagens a dois grandes autores: Reinaldo Santos Neves e Dostoiévski, leituras favoritas do autor, intelectuais que ele muito respeita. Tanto é assim que, além do campus da Ufes, sempre presente na obra de Reinaldo, há também a vila de Manguinhos, tão festejada em A Ceia Dominicana: Romance Neolatino, obra em que existe um (des)encontro entre o narrador e sua musa, ela também uma personagem típica das mulheres de Reinaldo.  

Por tudo isso e muito mais, o livro de Pedro J. Nunes é leitura recomendada para quem deseja conhecer a boa literatura brasileira, com um olhar denso e complexo sobre o universo feminino.

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3 respostas para “Crônica do amor desperdiçado”.

  1. Avatar de vibrantea11e3b9f7
    vibrantea11e3b9f7

    João, vc está fazendo um trabalho magnífico de divulgação da literatura e cultura capixaba. Um Estado em que estive pequeno, na faixa de 8-10 anos, quando durante 4 anos fui com meus avós passar as férias em Guarapari, já que minha avó sofria da coluna e se enterrava na areia monazítica. Tenho dúvidas sobre se as dores dela serenavam por causa da areia ou da calma da bucólica Guarapari daqueles tempos, com suas ruas de terra, cadeiras à noite na calçada e praias deliciosas. Tempos depois, já com mulher e filhos, quis mostrar Guarapari a meus filhos, e por sorte deu fome no caminho e paramos em Iriri para almoçar. Depois fomos para uma Guarapari cheia de prédios e turistas, uma outra cidade. Nem dormimos no hotel, liguei para o Hotel Ilmenita de Iriri e voltamos para lá no mesmo dia. Dali em diante, fomos 28 anos seguidos a Iriri, os últimos 26 ficando no Hotel Espadarte, interrompemos por causa da crise da Celia, mas este ano voltamos com os filhos e netos em abril, uma delícia.

    Foquei nesta parte pois vc talvez não a conhecesse. Tive a sorte depois de ir trabalhar na Aracruz, e quase semanalmente ia ao ES, durante os 24 anos que fiquei na empresa, quando nos conhecemos. Juntos, acompanhamos a virada política que resultou na queda da banda podre e na ascenção de um arranjo institucional de fazer inveja a todos os outros estados brasileiros. Outra sorte foi meu filho Marcelo ter passado no 1o concurso para o IEMA, e ter se mudado para Vitória, onde nasceu nosso neto Leonardo.

    O ES é hoje meu 2o Estado, ou talvez até o 1o de coração, pois admiro-o muito e invejo a qualidade de vida e os contrastes, com as praias lindas e a serra deslumbrante de Pedra Azul, assim como toda a sua cultura. Digo, à sério, que só não meu mudo para o ES porque minha vida já está por demais enraizada no Rio, mas invejo quem mora no ES, que tem uma qualidade de vida (aí incluída a qualidade da política) mil vezes melhor do que este violento e sufocante Rio de Janeiro.

    Abs e parabéns não só por suas postagens, como por toda a contribuição que vc dá ao ES.

  2. Avatar de Maria Elvira Tavares Costa
    Maria Elvira Tavares Costa

    Muito bom, querido!Gratidão Enviado do meu iPhone

  3. Avatar de pjnunes8

    João Gualberto, com seus artigos sobre a literatura e os escritores do Espírito Santo, é um aval poderoso para a produção literária do Estado. Seu texto é claro, dizendo logo a que vem, longe da hermética produção acadêmica sobre literatura. A guinada sociológica é um achado de João, mas não é apenas isso. Seu olhar é arguto, e sempre generoso. A leitura de meu romance Crônica do amor desperdiçado, contemplada neste artigo, representa, mais que um estímulo, a esperança de crescimento da visibilidade da nossa literatura, que não fica a dever à produzida no restante do País.

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