Ulysses Guimarães: A saga de um grande brasileiro

João Gualberto

Há vinte e cinco anos atrás, exatamente no mês de outubro, o Brasil passava a ter uma nova Constituição. Ela seria, na verdade, muito mais do que a grande norma disciplinar da sociedade brasileira. Foi o símbolo da nossa capacidade de vencer o arbítrio. De superar o casuísmo típico dos governos militares que tivemos por mais de duas décadas.

Mas, a Constituição de 1988 não se fez sozinha. Ela foi, antes, obra elaborada pelo que havia de melhor na inteligência política brasileira. Toda uma geração de notáveis políticos esteve trabalhando para construí-la, sob a comando do Presidente da Assembleia Nacional Constituinte: o deputado federal pelo PMDB de São Paulo Ulysses Guimarães. Respeitado líder do processo, o Congresso Nacional fazia silêncio quando ele falava, e acatava seus encaminhamentos. Era respeitado e respeitável. Poucos tiveram em nossa história política mais recente o domínio do plenário da Câmara que ele teve.

Mas, Ulysses não chegou a este lugar importante por acaso. Teve toda uma trajetória em defesa dos direitos individuais e das liberdades coletivas. Foi durante a ditadura militar, um dos maiores baluartes contra seus arbítrios e excessos. Muito antes disto, quando era Presidente da Câmara Federal ainda vinculado ao velho PSD no governo Juscelino Kubstichek já dava demonstrações de sabedoria política.

Eleito por São Paulo, tinha um estilo quase que mineiro, como o de seu grande amigo e interlocutor Tancredo Neves. Em evento realizado para homenagear o presidente que morreu sem tomar posse, ele disse: Eu admirava Tancredo. Eu amava Tancredo. Eu temia Tancredo. São os sentimentos mais profundos que um grande político pode gerar em seus parceiros. Ambos tinham forte implicância com os oportunismos também históricos de José Sarney, muito embora tivessem tido longa convivência política. De fato foi uma âncora do problemático governo de transição capitaneado quase que casualmente por José Sarney. Ulysses levou para sua militância democrática toda sua longa bagagem de vida e de sabedoria política.

É deste personagem que enche de orgulho a boa política brasileira que trata Jorge Moreno em sua livro A História de Mora: A Saga de Ulysses Guimarães. E o fez de forma muito interessante, resultando em obra leve e de leitura fácil para os que se interessam pela história da política brasileira. Ao invés de escrever uma biografia tradicional – que, aliás, já foi feito – ele optou por ver a vida de Ulysses sob o olhar de sua mulher, Mora Guimarães, sua companheira nas quase cinco décadas em que esteve no topo de nosso sistema político. Como se fossem registros escritos da intimidade do poder da época. Esta estratégia garante ao jornalista, também ele íntimo do grande político, uma compreensão mais humana do personagem.

O livro de Jorge Moreno com prefácio de Roberto DaMatta
O livro de Jorge Moreno com prefácio de Roberto DaMatta

O prefácio, assinado pelo antropólogo Roberto DaMatta, chama a atenção que nos meandros de uma delicada e terrível luta política, uma visão feminina enxerga o que ocorre com os amigos do marido, com seus correligionários, seus eventuais aliados e seus inimigos, ocultos ou declarados, com o olhar de uma participante marginal. Assim, ele transforma no livro as supostas determinações da história, com sua lógica implacável, em jogo que passa, antes de mais nada, pelo trivial, pelo doméstico e pelo dia a dia que engloba, afinal de contas, todas as vidas. Em um clima, portanto, descontraído e cheio dos pequenos incidentes que fazem nossas vidas serem reais, o leitor vai descobrindo, em meio a luta pelo reestabelecimento democrático – sem si mesmo uma grande e meritória batalha – um homem que dignificou as grandes funções que exerceu. É neste contexto que podemos, por exemplo, entender o que levou Lula a apoiar e participar da campanha de Fernando Henrique ao senado em 1978, na chapa de Franco Montoro. Talvez a gente possa entender o começo das questões que fizeram com que PSDB e PT tivessem histórias de poder tão próximas e disputas eleitorais tão longevas. Nas eleições indiretas marcadas para serem vencidas pelo General Ernesto Geisel em 1973 Ulysses disputou na condição de anticandidato. Jorge Moreno atribui a esta militância corajoso parte do sucesso eleitoral do MDB em 1974, quando começaram a ser criadas as condições para o fim do ciclo dos militares.

O autor recebe o atual vice-presidente do Brasil Michel Temer no lançamento do livro. Pílulas de sabedoria política.
O autor recebe o atual vice-presidente do Brasil Michel Temer no lançamento do livro.

Mas, os grandes momentos da vida política de Ulysses Guimarães foram sem dúvida aqueles em que deu à construção da democracia que hoje vivemos. Ele foi fundamental nas manifestações das Diretas, na Assembleia Nacional Constituinte e também ao processo de afastamento de Fernando Collor da presidência em 1992. Cada um destes momentos tem seus bastidores bem mostrados no livro de Jorge Moreno. Pela Saga de Ulysses, pela importância dos temas e pelo texto leve e saboroso do autor, sobretudo quando revela pílulas de sabedoria política brasileira, o livro merece ser lido.

Abaixo, uma das últimas entrevistas do Dr. Ulysses ao Programa do Jô, em 1992. Além da inteligência, bom humor em um bom papo com o apresentador.

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